quinta-feira, 22 de março de 2012

Dia Mundial da Água





Terra das águas
O Brasil dispõe de fartura de água doce, mas o consumo inconsequente e a falta de infraestrutura ameaçam jogar pelo ralo esse presente da natureza.  
Em 2009, uma equipe multinacional formada por cientistas da Petrobras, pesquisadores ingleses e holandeses da Universidade de Amsterdã perfurou um poço com 4,5 mil metros de profundidade na foz do rio Amazonas. Eles não estavam à procura de petróleo, mas capitaneavam uma espécie de viagem no tempo. Sua busca era pelo mais primitivo leito do rio, enterrado por milhões de anos de deposição de sedimentos. Mais tarde, a equipe anunciou a descoberta em uma revista especializada: de acordo com as análises dos estratos, o rio mais caudaloso do planeta nasceu há 12 milhões de anos.
Foi esse o tempo necessário para que o Amazonas projetasse em suas margens uma gigantesca floresta tropical. Sua água segue até o Atlântico e, por evaporação, volta a despencar sob a forma de chuvas torrenciais na selva. Um ciclo generoso, expresso em proporções colossais: trajeto de 6 675 quilômetros a partir dos Andes e vazão média diária de mais de 17 trilhões de litros - 15% de toda a água enviada ao mar pelos rios do planeta. É uma espécie de encanamento invisível na atmosfera, que, de forma espantosa, é o mesmo desde os primórdios.
A generosa bacia Amazônica é o exemplo mais contundente de uma nação pródiga em rios, lagos e aquíferos que, juntos, concentram mais de 11% de toda a água doce disponível da Terra. Não há fartura semelhante em outros cantos do globo. Considerando toda essa abundância, cada brasileiro teria à disposição, na teoria, 34 milhões de litros por ano. É uma quantidade fabulosa, 17 vezes maior do que a ONU considera uma média confortável de consumo.
Nas próximas décadas, nas quais o recurso tende a tornar-se escasso em todo o mundo, as questões mais importantes irão orbitar em torno do uso inteligente dessa água. "Mesmo a nossa fartura é aparente, já que os maiores rios estão distantes milhares de quilômetros dos principais aglomerados urbanos", analisa Wanderley da Silva Paganini, superintendente de gestão ambiental da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). "É preciso entender que se trata de um bem finito. Daí a importância de utilizar o mínimo necessário e não poluir as fontes naturais", completa ele.
O consumo consciente, todavia, está longe de ser uma realidade no Brasil. Por dia, o brasileiro utiliza 132 litros de água em banhos, bebidas, cozinha, lavagem de carros, calçadas e pisos, além da rega de jardins e plantações de tamanhos variados. Com isso, quase 30% da água tratada nas cidades escorre pelos vazamentos nas ruas e no subsolo. "Na região metropolitana de São Paulo, no verão deste ano, por exemplo, tivemos picos de consumo de 84 mil litros por segundo, mais de 30% além do normal. Esse tipo de exagero poderia ser evitado sem dificuldade", diz Paganini.
O privilégio da abundância não se aplica a todos no Brasil. A distribuição nacional do recurso, tal qual a de renda, é perversa. Em torno de 80% da água concentra-se na Amazônia, onde vivem apenas 5% dos brasileiros, muitos dos quais diante de um terrível paradoxo: ainda que cercados de rios, os moradores do interior da Região Norte reconhecem na água potável um artigo de luxo. "Hoje, 19 milhões de pessoas, 10% da população, não têm acesso à água tratada. É muita gente", aponta Paganini. Em função disso e da pouca noção de cuidados básicos com higiene, o líquido que deveria matar a sede e garantir a saúde transmite doenças.
Já no semiárido nordestino, 18 milhões de pessoas sobrevivem em uma zona tomada por um dos maiores índices de evaporação do mundo. Ao longo do ano, ocorrem períodos de chuva, mas o solo e o clima árido não favorecem a formação de fontes ou rios volumosos. A pouca água acumulada nos poços rasos não recebe os cuidados básicos e acaba por se tornar, também, propagadora de enfermidades.
As dissonâncias naturais na geografia dos recursos hídricos do Brasil foram, em muitos aspectos, acentuadas por processos históricos. A mecanização da agricultura e a industrialização acelerada fizeram com que a maioria dos habitantes deixasse o campo, criando problemas relacionados à urbanização e, com isso, afetando as torrentes. O trecho paulistano do rio Tietê é a vítima mais evidente desse fenômeno: o corpo meândrico foi transformado em um canal reto; as várzeas inundáveis, tomadas de construções e asfalto impermeável; e o leito, convertido em esgoto. O resultado caótico desse desrespeito ao curso d’água são as trágicas enchentes exibidas pelos noticiários a cada verão.

O processo que levou a esse cenário teve início nos anos 1940, época na qual, pela primeira vez, um censo nacional dividiu a população em rural e urbana. Nas cidades, havia, então, uma minoria de 31% dos habitantes. Em 1964, as duas partes já eram iguais. O atual relatório do Programa Hábitat, das Nações Unidas, revela que 52,3 milhões de brasileiros (cerca de 27% do total) vivem em favelas, locais em que o abastecimento de água é, muitas vezes, fruto de ligações clandestinas isentas de tratamento.
O mesmo estudo prevê que até 2050 a porcentagem da população em centros urbanos deve ultrapassar os 93%. Serão nada menos que 238 milhões de pessoas morando nas cidades do país. Essa concentração vai criar pontos críticos no fornecimento de água em muitas metrópoles e nos centros industriais. "Em breve, ela deixará de ser um recurso tido como abundante e de baixo custo para se transformar em um produto valioso e escasso", aposta o pesquisador Sílvio Ferraz, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo.
Os dados da Pesquisa Nacional de Amostras a Domicílio de 2009, divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), servem como indicadores das dificuldades que estão por vir. Apesar dos progressos nos serviços de fornecimento de água potável por rede geral encanada (84% das residências do país), apenas 59% das moradias pesquisadas possuem acesso a algum tipo de tratamento.
Em certos estados, a situação é especialmente crítica. Até o fim de 2009, o Amapá tinha o menor porcentual de domicílios com ligação à rede geral de esgoto (aquela que, em tese, transporta os dejetos para estações de tratamento, impedindo que sejam despejados in natura em rios e córregos), com apenas 1,3% de unidades com acesso à rede ou com fossas sépticas conectadas a um desaguadouro geral. No Piauí e no Pará, a situação não é muito diferente.
A ausência de um sistema abrangente de coleta e tratamento de esgoto resulta em corpos d’água poluídos em zonas urbanas. Em decorrência disso, há um aumento na exploração de fontes subterrâneas. Vários dos aquíferos estão perto da exaustão e do colapso geológico. Acumulados ao longo de milhões de anos, em lento processo de recarga pelas chuvas, esses reservatórios engolem toda sorte de porcaria produzida pela ocupação humana na superfície, que vai contaminar o líquido potável no subsolo.
Um estudo publicado em setembro de 2010 pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos mostra que vários dos aquíferos americanos já absorveram até dez vezes mais nitrogênio e fósforo - substâncias comuns nos fertilizantes usados na agricultura intensiva -, bem acima dos níveis considerados saudáveis. O mesmo risco corre o Brasil: boa parte do aquífero Guarani fica sob o fértil cinturão agrícola do Sul e do Sudeste. Outro vilão é a irrigação, responsável por retirar grandes volumes de água da natureza. Na velocidade em que o subsolo está sendo sugado, os aquíferos não conseguem mais recarga adequada.
Cálculos da Universidade de Utrecht e do Instituto de Pesquisas Deltares, na Holanda, publicados na revista Geophysical Research Letters no fim de 2010, comprovaram outra face danosa da retirada excessiva dos depósitos subterrâneos. Essa água passou a fazer parte do ciclo hidrológico mundial e contribuiu para a elevação anual no nível do mar a uma taxa de 0,8 milímetro (um quarto do total, que é de 3,1 milímetros). Tendo em vista que o oceano responde pela maior parte da evaporação enviada à atmosfera, os efeitos resultaram em um aumento das precipitações e, de acordo com a região, das chances de inundações. "A tragédia provocada pelo terremoto de 1985 na Cidade do México foi maximizada pelas modificações do solo decorrentes da exaustão do aqüífero", exemplifica o biólogo Aristides Almeida Rocha, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
A mesma equipe de pesquisadores calculou que, de 1960 a 2009, a captação de águas subterrâneas em todo o planeta mais que dobrou, passando de 312 quilômetros cúbicos anuais para 744. No Brasil, o aumento proporcional foi ainda maior. No mesmo período, a exploração de poços artesianos subiu de apenas 7 quilômetros cúbicos para 58 - e a tendência é continuar a crescer. "Isso pode ter implicações no abastecimento humano no futuro", alerta o climatologista Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A boa notícia é que, no caso brasileiro, o volume é pequeno se comparado às reservas desse "oceano" escondido. As áreas favoráveis à absorção e acumulação, quase sempre rochas cristalinas sedimentares formadas há milhões de anos, ocupam a maior parte do território do país, e 90% delas têm regime de chuvas abundantes, entre mil e 3 mil milímetros por ano.

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